O coronavírus e os contratos: a crise, a alteração dos contratos e a teoria da imprevisão
O direito é associado, no mais das vezes, à estabilidade e à segurança das relações jurídicas mantidas entre as pessoas.
A prova maior do que ora se afirma encontra-se no princípio essencial de direito civil conhecido como pacta sunt servanda, o qual, em tradução livre do latim para o português, significa que os pactos assumidos têm que ser respeitados.
E assim é que deve ocorrer, em regra: o que foi contratado tem que ser observado, cumprido.
Ocorre, contudo, que o princípio pacta sunt servanda, apesar de essencial, não se mostra absoluto. Com efeito, pode ser relativizado, superado, particularmente diante da ocorrência de situações excepcionais.
E atualmente temos uma situação excepcional que seguramente interferirá em diversas relações contratuais, exigindo sua flexibilização e sua alteração, ainda que em caráter transitório: a pandemia mundial do coronavírus e as várias medidas de restrição (de circulação de pessoas, de atividades econômicas) determinadas pelo Poder Público.
De fato, algumas determinações emanadas do Poder Público de modo a coibir a disseminação do coronavírus impactam diretamente em relações jurídicas (contratos) mantidos no quotidiano das pessoas, sejam contrato trabalhistas, cíveis, comerciais ou de consumo.
Tome-se o exemplo da determinação de fechamento de shopping centers e vários tipos de comércio de rua no Estado de São Paulo. Como é possível que se mantenha o lojista de shopping center sob impedimento de abrir seu comércio de um lado, e manter esse mesmo lojista, por outro lado, obrigado ao pagamento integral do aluguel?
Seria criada uma situação extremamente desproporcional em detrimento do lojista, proporcionando-se um grande desequilíbrio contratual em seu prejuízo.
O direito, repita-se, não é insensível a tais situações excepcionais. A título de exemplo, o Código Civil brasileiro, em seu art. 317, dispõe que quando, “por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Ainda no âmbito do Código Civil, seu art. 478 dispõe que: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”
Além do Código Civil, também o Código de Defesa do Consumidor conta com disposição de conteúdo similar: “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”
É a chamada teoria da imprevisão, que se aplica em momentos singulares, diante de modificações dos fatos que interfiram no equilíbrio da relação contratual.
É claro que cada situação tem que ser particularmente analisada: há que se avaliar se a relação jurídica entre as partes foi realmente afetada pela situação excepcional, de modo a se permitir sua modificação. No caso dos lojistas de shopping centers em São Paulo, por exemplo, é evidente o impacto negativo produzido pela pandemia do coronavírus, simplesmente porque seus comércios estão obrigatoriamente fechados; já no caso daqueles que mantêm comércio de rua no ramo de supermercados, não há qualquer restrição produzida pela pandemia do coronavírus, de modo que não haveria qualquer justificativa para reduções de alugueis de supermercados situados em imóveis de rua alugados (aliás, está até mesmo ocorrendo aquecimento de tal atividade comercial).
De todo modo, o que se quer dizer é que há que se ter bastante sensibilidade neste momento especial relativamente aos contratos em vigor: é necessário que as partes sejam permeáveis à possibilidade de alterações transitórias nos contratos (em seu valor, em seus prazos de pagamento, etc) que se façam necessárias de modo que as obrigações contratuais não se tornem desproporcionais, no sentido de muito vantajosas para uma parte e extremamente nocivas para a outra parte.
Trabalhadores que sejam afastados sem remuneração (como determinada a MP 927/2020, em sua redação original), ou mesmo que sofram redução de sua remuneração, reúnem condições para, eventualmente, postular a redução transitória de obrigações contratuais que mantenham. O mesmo raciocínio aplica-se a pessoas jurídicas que tenham suas atividades afetadas pela paralisação, ou redução, das atividades econômicas: é possível que se configure um cenário que permita a tais pessoas jurídicas postular o reequilíbrio de algumas relações contratuais que mantenham, com redução transitória de valores, ou mesmo postergação (parcelamento) de obrigações atuais para momentos futuros.
O cenário ideal é que as partes, de comum acordo e verificadas as efetivas condições de prejuízo exagerado em detrimento de uma delas por força da pandemia do coronavírus, sejam permeáveis a alterações transitórias, passageiras, das condições contratuais (concedendo-se desconto, redução de preços para pagamento futuro).
Caso não exista entendimento entre as partes, remarcamos que ao Judiciário, por força do art. 317 do Código Civil acima citado, poderá ser provocado a interferir na relação contratual, de modo a equalizá-la e adaptá-la às circunstâncias externas que a afetem.
Rogerio Licastro
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